ONU Mulheres | 25.11.2020
por Anastasia Divinskaya, representante da ONU Mulheres no Brasil
Neste ano, no Brasil, implementamos a campanha “Onde você está que não me vê?”, destacando as causas, implicações e consequências da violência contra diversos grupos de mulheres e meninas. Ou seja, nosso enfoque particular é sobre os grupos socialmente excluídos e marginalizados. O nosso objetivo é enfatizar a importância de abordar as múltiplas formas de discriminação enfrentadas pelas mulheres em sua diversidade em função do seu sexo, raça, etnia, origem religiosa e linguística, identidade de gênero e orientação sexual na prevenção e resposta à violência contra mulheres e meninas no Brasil.
Queremos tornar estas mulheres e as suas lutas visíveis.
Invisibilidade. Será que o problema existe mesmo?
A violência contra as mulheres e meninas é uma grave violação dos direitos humanos. Tem uma implicação devastadora na vida das mulheres, das suas famílias e comunidades, bem como de toda a sociedade. Trata-se de uma pandemia e o Brasil não é exceção. No entanto, a questão da violência é geralmente silenciada. A violência doméstica é considerada um assunto privado e interno às famílias. Em geral, as sobreviventes da violência não denunciam com medo de serem culpabilizadas pela sociedade. Assim, os dados existentes não são consistentes e não fornecem o quadro preciso da situação real em relação à violência contra as mulheres e meninas.
O manto de silêncio também protegeu os perpetradores de agressões contra mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres LBTI e outras mais em situação de vulnerabilidade em função de seu pertencimento étnico-racial, viver em situação de pobreza ou com HIV, ter alguma deficiência, sua idade ou natureza do seu ativismo, como acontece com mulheres defensoras de direitos humanos. Estas mulheres são as mais afetadas, as menos visíveis e as que têm mais a ganhar com a força coletiva das vozes que advogam pelos direitos e pela justiça social ao vislumbrar e perseguir uma profunda mudança cultural.
É por isso que este ano nos concentramos em lançar luz sobre essas mulheres historicamente invisibilizadas por meio da nossa campanha “Onde você está que não me vê?”, reforçando o compromisso da campanha UNA-SE em contribuir com a construção de um mundo livre de violência a ser desfrutado por todas as mulheres e meninas.
Qual é a situação da violência contra as mulheres e meninas no mundo e no Brasil?
Globalmente, mesmo antes da COVID-19, uma em cada três mulheres já havia sofrido violência física ou sexual durante a sua vida. Só no ano passado, 243 milhões de mulheres e meninas, entre 15 e 49 anos de idade, sofreram violência sexual ou física por um parceiro íntimo. Trata-se de uma pandemia de proporções inimagináveis. Em alguns países, tais como os afetados por conflitos, a situação é ainda pior, onde cerca de 70% das mulheres e meninas reportaram já ter sido vítimas de violência baseada em gênero. À medida que o mundo recuou para o interior das casas devido às medidas de distanciamento e isolamento sociais introduzidas para conter a pandemia da COVID-19, relatórios evidenciaram um aumento alarmante da já existente pandemia de violência contra as mulheres em diversos países do mundo.
A violência é também generalizada e sistêmica no Brasil. A cada 2 horas uma mulher é assassinada. No ano de 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas e 68% das vítimas eram negras. Entre 2008 e 2018, os assassinatos de mulheres negras aumentaram 12,4% enquanto os assassinatos de mulheres não negras diminuíram 11,7%. Em 2019, a polícia registrou 66.123 casos de estupros: 85,7% eram mulheres e 57,9% das vítimas tinham menos de 13 anos de idade .
A violência – seja sexual, física, psicológica ou econômica – pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora: em casa, no trabalho e em áreas públicas. As mulheres e meninas não se sentem seguras nos transportes públicos. De acordo com a pesquisa “Percepção sobre Segurança das Mulheres nos Transportes”, recentemente conduzida pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, 97% das entrevistadas relataram ter sido vítimas de assédio nos meios de transporte; 71% disseram conhecer uma mulher que tenha sido vítima de assédio sexual num espaço público; e 46% das mulheres não se sentem confiantes para usar os meios de transporte temendo sofrer assédio sexual.
A análise dos dados de 2019 sobre vitimização mostrou que: a cada hora, 526 mulheres foram vítimas de agressão física (4.7 milhões de mulheres ou 9%); 27.4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses (16 milhões de mulheres); 21.8% foram vítimas de ofensa verbal, como insulto, humilhação ou xingamento; 8.9% foram tocadas ou agredidas fisicamente por motivos sexuais (9 por minuto – 4.6 milhões); 3.9% foram ameaçadas com faca ou arma de fogo (1.7 milhão); 3.6% sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento (3 por minuto – 1.6 milhão); 42.6% das mulheres de 16 a 24 anos afirmaram ter sofrido violência nos últimos 12 meses; 28.4% das vítimas eram pretas; 27.5% eram pardas; e 24.7% eram brancas.
Mesmo quando analisamos os números gerais da população, a situação é chocante. Ao olhar para além da média e considerar a situação das mulheres que reiteradamente são deixadas para trás, nos deparamos com um quadro ainda mais desafiador.
No Brasil, muitos grupos de mulheres enfrentam rotineiramente formas múltiplas e cruzadas de discriminação tais como destacados anteriormente. Estes grupos enfrentam violações de direitos humanos, intolerância e discriminação particularmente severa no acesso a espaços de poder e tomada de decisão, oportunidades de trabalho e emprego – especialmente aqueles que se enquadram no conceito de trabalho decente, serviços relacionados ao cuidado com saúde e educação. Enfrentam também barreiras significativas de acesso aos serviços essenciais referentes a violência contra mulheres e meninas.
Não deixar ninguém para trás – especialmente estas mulheres e meninas que são ameaçadas ou sofrem violência, ou foram em algum momento de sua vida sujeitas a esta violação de direitos humanos -, requer recursos, políticas, compromissos e programas que se concentrem em atingir as comunidades mais marginalizadas. É por isso que ao colocar em destaque as vastas implicações e consequências da violência contra mulheres e meninas pertencentes aos grupos mais discriminados e socialmente marginalizados no Brasil, pretendemos este ano, por meio da campanha UNA-SE, sensibilizar e desencadear uma conversa a nível nacional sobre a necessidade de políticas, reformas e serviços inclusivos, não discriminatórios, sustentáveis e que adotem uma perspectiva interseccional.
Quais são as raízes da violência contra as mulheres e meninas e o que mantém sua escalada, em vez de sua eliminação?
Já pensou o que conecta os crimes de violência sexual em contexto de guerras com a violência doméstica e com o assédio sexual nos transportes públicos? Esta resposta está nas normas e papéis sociais atribuídos a mulheres e homens.
Estas normas e diferentes papéis sociais são a causa raiz da discriminação contra as mulheres e meninas, sendo a violência contra elas a manifestação mais difundida e a forma extrema de violação de seus direitos. Sem analisar a origem da questão, seguiremos falhando em produzir resultados efetivos quando falamos em prevenção e eliminação da violência. Quais seriam as alternativas? A primeira seria acreditar que os homens seriam naturalmente agressivos devido à testosterona e as mulheres passivas cuidadoras de crianças, idosos, de enfermos e de seus maridos. E que isto seria biologicamente determinado. Ou alternativamente, como segunda opção, acreditar que há uma estrutura de poder em jogo que pode ser desafiada e, assim, alterada. E esta última é a alternativa real.
Sem compreender, minimamente que seja, estas normas e papéis sociais que são tradicionalmente construídos, ficamos sem opção quando o assunto é prevenção da violência contra mulheres e meninas. Tudo é muito relativo, mas há algumas características comuns a sociedades estruturadas por estas normas e papéis que são compartilhadas ao redor do globo, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Estas estruturas sociais são abrangentes e universalizantes, persistindo ao longo da história e em nenhum lugar estamos suficientemente perto de ultrapassar estas barreiras transculturais.
Estas características, facilmente visíveis em qualquer sociedade no mundo, incluindo o Brasil são:
- Ausência de poder formal ou estatal: as mulheres estão marginalmente representadas no governo e no parlamento;
- as mulheres realizam a maior parte das tarefas domésticas e de cuidado não remunerado;
- as mulheres estão mais suscetíveis a sofrer abusos; e/ou
- serem retratadas nos meios de comunicação e na cultura popular de forma muito limitada e estereotipada.
Estas normas e papéis sociais acabam informalmente institucionalizando alguns lugares sociais para homens e mulheres. Os homens dominam todos os espaços públicos e instituições relevantes da sociedade, sejam elas no meio jurídico, econômicas, religiosas, na cultura familiar, etc. São visões que sublinham a desigualdade entre mulheres e homens, alimentam o discurso público discriminatório que subordina as mulheres, privando-as de vivenciar a igualdade de oportunidades e direitos. Trata-se de poder, de desigualdade de poder.
Formalmente, o poder é visto como sendo aquele exercido por meio de estruturas reconhecidamente visíveis e como parte da maneira como a nossa sociedade funciona, quais sejam: instituições, políticas, leis e regras que definem o que é aceitável e o que não é aceitável e como são tratadas as pessoas que violam as leis e desrespeitam as normas.
Por mais que nos agrade pensar que o poder formal se baseia e opera embasado em normas internacionais de direitos humanos, temos de estar conscientes de que ele também pode operar e ser exercido de forma menos visível e/ou legalmente estabelecida, impondo mecanismos que reproduzem as desigualdades. Isto porque é informado e apoiado pela força informal das convenções sociais, discursos e práticas culturais socializadas, que nos acompanham em nossa vida cotidiana. Internalizamos as relações informais de poder por meio da socialização que se inicia ainda nos primeiros anos de nossa juventude, a começar pela aceitação das desigualdades existentes entre as responsabilidades tradicionalmente atribuídas, por exemplo: aos pais e às mães, às pessoas mais velhas e mais jovens nas famílias, entre outras. E aqui não estamos falando em desrespeito. Estamos falando em exercício de poder informal que frequentemente é tido como normal, natural, dado, sendo, assim, menos visível, menos palpável.