Publicado em Diálogos pela Liberdade – Rede Oblata Brasil – 18/09/2020
“Como é possível que não haja mínimos para todos e que a riqueza esteja tão mal repartida? Somos pessoas, não objetos sexuais. Temos direitos”. (mulher atendida pela Rede Oblata)
Como afirma Beatriz Gimeno,
Prostituição tem a ver com tudo: “com a ética e a moral na medida em que se interliga com as relações humanas; com a sexualidade e com as diferentes concepções acerca do sexo; com a construção social e o desejo; com a distribuição de papéis sociais e sexuais e o desigual repartir de poder entre homens e mulheres; com a renda material, mas também simbólica; com o capitalismo, a exploração trabalhista, a pobreza, a globalização, as desigualdades; com o mercado e a lei da oferta e da procura; com o consumo exacerbado e a necessidade de satisfazer de imediato as necessidades; com o individualismo sem conexão com a comunidade”. (Del Pozo, Maria Luiza, 2015)
A fragilidade causada pela vulnerabilidade social mostra que as pessoas que exercem a prostituição se prostituem por questões estruturais, sejam da ordem das necessidades básicas, desemprego, sustento familiar, influência de familiares e amigos, bem como das questões originariamente simbólicas, vinculadas aos códigos sociais e culturais vigentes em uma sociedade patriarcal -capitalista. Conforme observamos, nos quinze países onde a missão Oblata atua, a prostituição tem sido uma opção de renda, especialmente para as mulheres pobres/negras, das periferias, imigrantes submetidas a muitas formas de vulnerabilidade, sendo essa “escolha”, notadamente marcada por um viés de gênero, raça e classe social.
A indústria do sexo e o modelo cultural androcêntrico patriarcal
A indústria do sexo é altamente lucrativa para aqueles que exploram a atividade prostitucional (cafetões, agenciadores, proxenetas[1]), tendo muitos interesses em jogo. E, na visão dos que detém o poder econômico, “é um negócio como outro qualquer” e como tal deve gerar lucro. Sendo assim, os hotéis de prostituição funcionam sem a preocupação de criar protocolos de saúde, higiene e segurança, como que num “Estado de Exceção,” em que não há ordenamento jurídico e sim leis e regras próprias. Mesmo estando a margem da lei há um silêncio e conivência social que permite que os estabelecimentos de prostituição funcionem sob o pretexto de “mal necessário”, “essencial” para atender as exigências sexuais de um modelo cultural androcêntrico patriarcal e machista.
Por outro lado, para as mulheres, entre outras questões, trata-se especialmente da sobrevivência. Desta forma, elas fazem vista grossa para os possíveis riscos de adoecer, já que têm medo de perder o espaço de geração de renda para o próprio sustento.
A atividade prostituicional é exercida sob grande pressão emocional e alguns fatores podem ser considerados com alto potencial desencadeante de adoecimento mental. Podemos citar: a grande pressão econômica imposta pelos altos valores cobrados pelo aluguel do quarto onde atendem os clientes, o baixo preço dos programas, a incerteza cotidiana de que conseguirá auferir ganhos suficientes para suprir as despesas, o medo a sofrer ameaças, violências ou ser contaminada por doenças sexualmente transmissíveis; a insalubridade e precariedade dos locais.
É importante ressaltar que, para além das necessidades econômicas, as mulheres têm uma relação ambígua com o espaço de exercício da atividade prostitucional e com as pessoas que ali transitam e trabalham (gerentes, seguranças, proprietários, clientes e outros). Ao mesmo tempo que se sentem exploradas pelas condições precárias do lugar, pelo desrespeito de alguns funcionários e clientes, ali também é sua “casa,” já que passam grande parte do dia ou mesmo moram nos quartos que alugam. Casa e trabalho se misturam no mesmo ambiente.
A restrita separação entre a vida pessoal e a vida laboral, o grande número de parceiros com várias demandas sexuais gera na pessoa um sentimento de ser tratada como objeto, causando baixa autoestima.
Uma atividade estigmatizante
Trata-se de uma atividade estigmatizante na qual não há reconhecimento social, pelo contrário há um desprestígio e a ideia fantasiosa de que através do esforço pessoal é possível deixar a prostituição. Desconsidera-se que, numa sociedade desigual superar as dificuldades em acessar os meios de desenvolver capacidades instrumentais que permitam ampliar as oportunidades de pleno exercício das liberdades individuais, não depende de empenho pessoal. Antes se faz necessário a criação de políticas públicas que assegure a possibilidade de ter educação, saúde, moradia, trabalho que garantam o respeito e a dignidade das pessoas.
Neste contexto, e considerando o funcionamento restrito e fechamento de alguns hotéis de prostituição do hipercentro de Belo Horizonte em função da pandemia covid-19, o Projeto Diálogos pela Liberdade BH – Rede Oblata Brasil, detectou a necessidade de iniciar uma articulação com parceiros públicos e privados e com os coletivos de mulheres que se denominam profissionais do sexo, para atender às demandas expressas naquele momento, pelas mulheres que aí exercem a prostituição: acolhimento, atendimentos virtuais, passagens para que pudessem retornar a seus lugares de origem, alimentação, orientações para acessar os benefícios socioassistenciais, dentre outros.
Cinco meses já se passaram desde o início da pandemia e outros matizes foram acrescentados ao cenário inicial. Algumas mulheres tiveram acesso aos benefícios emergenciais oferecidos pelo Governo, porém alegam não ser suficiente para manter os custos necessários a subsistência (aluguel, água, luz, diversos compromissos financeiros, cuidados com a família). Já outras não conseguiram acessar tais benefícios, principalmente por não dispor da documentação necessária. A necessidade de sobrevivência exigiu que elas retornassem às suas atividades colocando em risco a própria saúde.
A pandemia covid-19 potencializou todos os transtornos que já observamos no âmbito prostitucional, ao ambiente de pressão e estresse continuo somou-se sentimentos de desesperança, frustração, solidão, incompreensão, culpa, ansiedade, insônia, irritabilidade, medo, insegurança, pensamentos negativos, dentre outros.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS): “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doença ou enfermidade”, levando a conclusão de que a saúde mental é mais do que a ausência de transtornos mentais ou deficiências. Em que pese fatores psicológicos, biológicos, genéticos e de personalidade específicos que podem tornar as pessoas susceptíveis ao adoecimento mental consideramos o sofrimento psíquico como um mal-estar social que se manifesta no campo psíquico pessoal.
Saúde mental e cidadania
A promoção da saúde mental depende em grande parte de estratégias intersetoriais que protejam os direitos básicos, políticos, socioeconômicos e culturais, oferecendo equidade de oportunidades a todos. Pressupõe a garantia de direitos fundamentais que viabilizem o desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas que possibilitem a pessoa humana atingir o seu fim último, o seu bem, a sua felicidade, que em última instância é a possibilidade se afirmar como sujeito agente de sua própria história.
Para que as mulheres atendidas por nós possam se fortalecer como sujeitos de sua própria história buscamos escutá-las em suas necessidades e dores para que fortaleçam sua capacidade de resiliência e resistências diante das adversidades cotidianas.
Procuramos promover a ética do cuidado nos colocando como seres humanos diante de outro ser humano que solicita de nós respeito à sua dignidade. À medida que criamos um ambiente de aceitação incondicional e as ajudamos a expressar seus medos e frustrações e o reconhecimento de suas vulnerabilidades as conectamos com suas potencialidades.
Entretanto, consideramos que a gravidade da situação exige que várias frentes de trabalho se articulem para ampliar o apoio e o atendimento às mulheres. Nos perguntamos então: como parceria quais meios e oportunidade podemos criar para minimizar o impacto da pandemia na vida de as mulheres que exercem a prostituição?
[1] Ressaltamos que, de acordo com o Código Penal Brasileiro o proxenetismo é crime, conforme determina os artigos 227 ao 231-A.
Por: Rosa Maria – Irmã Oblatas
Isabel Brandão – Psicóloga da Unidade Diálogos
Referências:
- Del Pozo, Maria Luiza – Interpelação ética das mulheres que exercem prostituição e são vítimas do tráfico com fins de exploração sexual.
- Sen, Amartya- O desenvolvimento como Liberdade.
- https://nacoesunidas.org/saude-mental-depende-de-bem-estar-fisico-e-social-diz-oms-em-dia-mundial/