Por Lúcia Alves da Cunha

Quando me pediram para escrever este texto sobre a espiritualidade da Quaresma, fiquei vários dias em sintonia com o tema, confrontando o que a Igreja Católica nos orienta através dos textos bíblicos (rezar, meditar e atuar nesse período) com o momento atual que estamos vivendo, sobretudo nos últimos anos.

Entre os assuntos mais noticiados e debatidos em todas as esferas da sociedade está a pandemia do COVID-19.  A pandemia gerou incertezas, medo e muito sofrimento nas famílias devido à enfermidade e perda de entes queridos. 

Outro fator do contexto atual mundial, que está nos afetando gravemente, é a alteração climática. Secas prolongadas, excesso de calor provocando graves queimadas em algumas regiões e, em outras, chuvas com grande volume provocando enchentes devastadoras. São os extremos ceifando a biodiversidade.

Segundo o teólogo Leonardo Boff, a natureza está reagindo ao que a Humanidade está fazendo com ela. Os vírus que têm surgido ultimamente, e outros que poderão aparecer, são resposta ao aquecimento global, que de certa forma, “destroem as casinhas dos vírus” e eles nos atacam.

Diante desse contexto, como vivenciar a espiritualidade da Quaresma? 

A palavra “quaresma” vem do latim, quadragésima, que significa um período de 40 dias entre o Carnaval e a Páscoa. É um tempo de caminhada de purificação e renovação da nossa vida. A espiritualidade da Quaresma lembra a experiência do povo do Primeiro Testamento da Bíblia, que peregrinou durante quarenta anos rumo à Terra Prometida e do próprio Jesus, tentado no deserto durante quarenta dias e quarenta noites (Cf. Mt 4,1-11). 

A Quaresma inicia na quarta-feira de cinzas e termina na manhã da quinta-feira da Semana Santa, quando acontece a Celebração Eucarística que dá início ao Tríduo Pascal.  O tempo da Quaresma é o ponto central da vida cristã, pois faz memória do Mistério Pascal: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. 

A espiritualidade da Quaresma propõe uma preparação das pessoas cristãs e da comunidade eclesial para a Páscoa. Motiva-nos a uma mudança de vida, a perceber nossas incoerências, limitações e o quanto somos amadas e amados por Jesus, que sempre nos dá oportunidade de retomar nosso caminho para o bem. As palavras fortes nesse período são “conversão” e “reconciliação”. 

O Papa Francisco, durante a celebração de abertura da Quaresma de 2019, na quarta-feira de cinzas, citou as três atitudes propostas pelo Evangelho do dia afirmando: “o Evangelho propõe três etapas, que o Senhor pede para percorrer sem hipocrisia nem ficção: a esmola, a oração e o jejum”.

Para a mudança de vida, a Igreja nos orienta a vivenciar essas atitudes que, ao longo da história, vão adquirindo novos significados de acordo com o contexto de cada época.

Oração

A oração possibilita a experiência, primeiramente, de contato conosco mesmas/os e, nesse contato, encontramos o sagrado que existe em nós, e na outra pessoa, na Natureza, no Cosmo.  Experimentamos uma força maior que nos move, nos sustenta e essa força é a espiritualidade cristã, é Deus. Essa vivência não deve ser intimista, mas nos motivar a ir ao encontro de quem necessita de nossa presença e apoio.

Jejum

O Jejum antes era entendido como deixar de alimentar-se por várias horas ou de consumir certos alimentos em sacrifício para agradar a Deus. No entanto, atualmente existem diversas interpretações quanto ao jejum, entre elas, é que ao privar-se de algo que nos faz bem, alimento ou não, o resultado dessa privação deve ser revertido a apoiar outras pessoas. Por exemplo, se deixo de comer algo durante a quaresma, esse alimento repasso para alguém que não tem. O jejum deve nos levar a entrar em sintonia com as pessoas para as quais são negados os direitos básicos de sobrevivência.

Em pleno século XXI, há pessoas que fazem uma única refeição no dia, ou até nenhuma. Recordo, no primeiro ano da pandemia, de uma mulher atendida em um dos projetos da Rede Oblata,que  ao solicitar cesta básica afirmou que só tinha alimentos para uma refeição no dia. Ela distraía as crianças com a TV até as três horas da tarde sem se alimentarem, porque era uma única refeição que tinham. 

O jejum também deve nos levar a refletir sobre os desperdícios de alimentos em nossos lares, e o consumo desenfreado no qual estamos inseridas/os. Será que tudo que consumimos é por necessidade? Ou o consumo está suprindo outras lacunas em nossas vidas? 

Esmola

A esmola é entendida como caridade. É importante ir ao encontro das pessoas mais necessitadas, pois a fome não espera. Porém, “esmola” não deve ser compreendida como assistencialismo; é também proporcionar condições para que a pessoa possa sair da situação em que ela se encontra. É mais fácil e cômodo dar algo material, do que acompanhar uma pessoa em um processo de reconquista de seus direitos básicos e dignos de toda pessoa humana, pois exige mais entrega, doação, perseverança e comprometimento. 

Quando a Igreja nos convoca na Quaresma a dar esmolas, ela recorda os ensinamentos de Jesus Cristo que nos convida a servir ao próximo com generosidade, desprendimento e gratuidade. Não só de bens materiais, mas nosso tempo, acolhimento, atenção, escuta, entre outras atitudes tão simples, mas ao mesmo tempo, tão nobres para a vida humana.  

Durante a pandemia percebemos o quanto o contato humano nos fez falta. O distanciamento de amigos e amigas, familiares, comunidades entre outros espaços de inter-relação social, mostrou que todas as pessoas são seres vulneráveis e necessitam de apoio umas das outras. Nossa esmola pode ser um sorriso, ter paciência com as diferenças das outras pessoas, atitudes às vezes mais desafiantes de concretizar do que doar algo material. 

O tempo da Quaresma é favorável para uma mudança pessoal do coração, um convite a sair do individualismo, fortalecer o diálogo, as relações fraternas e colocar em prática a solidariedade. A nível de comunidade eclesial e ecumênica, somos chamadas/os a participar da Campanha da Fraternidade, que desde de 1964 no Brasil, vem discutindo temas relevantes para a vida da Humanidade. 

O tema da Campanha da Fraternidade 2022 é Fraternidade e Educação e o lema: Fala com Sabedoria, ensina com amor. (Cf. Pr 31,26). Tem como objetivo principal “Promover diálogos a partir da realidade educativa do Brasil, à luz da fé cristã, propondo caminhos em favor do humanismo integral e solidário.” (Cf. Texto Base da CF, p.19).  

A educação, sobretudo o ensino público, nos últimos anos vem sendo sucateada, desvalorizada e desconsiderada pelo poder público. A pandemia do COVID-19, desvelou a desigualdade social existente na educação. Como comunidade de pessoas cristãs comprometidas com a vida e com a promoção das pessoas, principalmente as mais vulneráveis, “escutar, discernir e agir” é nossa missão em favor da educação no Brasil.