A 6ª edição das histórias em quadrinhos (HQs) “As Garotas do Hotel” já está disponível e traz o tema maternidades como plano de fundo do roteiro. Trata-se de um material socioeducativo e de sensibilização que visa o enfrentamento do estigma sofrido pelas mulheres que exercem a prostituição, destacando a situação de vulnerabilidade social e desigualdade de gênero, com um olhar sensível e que se conecta com a vida das mulheres assistidas pela Rede Oblata Brasil.
As HQs “‘As Garotas do Hotel” são voltadas para a conscientização sobre a realidade das mulheres e busca olhar de dentro para fora, com empatia e respeito. É um meio de informação, conscientização e denúncia contra estruturas injustas e desumanas. São abordados temas como saúde, direitos humanos das mulheres (violações), acesso à rede socioassistencial, maternidades, pobreza, dentre outros que permeiam as histórias de vida das mulheres em contextos de prostituição e vulnerabilidade, desde o nascer e crescer menina até o tornar-se mulher em um mundo patriarcal. Algumas das histórias têm continuidade nas edições seguintes e as personagens principais da primeira revista se fazem presentes, trazendo conexão e evolução da narrativa.
Quadrinhos como instrumento de sensibilização social
A roteirista e diretora criativa, Nanda Soares, comenta sobre a criação do material, que conta com o olhar coletivo e diverso para a construção do roteiro e das ilustrações.
O desenvolvimento do conteúdo é feito a partir da imersão junto à equipe de atendimento das quatro unidades Oblatas no Brasil e com a validação das próprias mulheres assistidas, que opinam e ajudam a dar o tom para a produção. Todo o roteiro leva em consideração os relatos, as observações participantes e não participantes, mescladas para construir uma narrativa com personagens que trazem para a ficção um pouco da profundidade da realidade vivenciada, com a poesia que se esconde e se revela sutilmente nas vozes quase sempre silenciadas pela sociedade. As pinceladas de humor traduzem a essência de mulheres que seguem em uma estrada de superação, às vezes transformando tragédia em comédia. Todo o sofrimento, medos e inseguranças estão balanceados com a força, a esperança e amor que transcende situações de vulnerabilidade extrema, com coragem diante de tantas violências que poderiam ser descritas nas suas mais diversas formas.
A coleção As Garotas do Hotel já conta com seis edições e tem continuidade devido ao sucesso inesperado da ideia que surgiu em uma roda de conversa, como sugestão de uma das mulheres assistidas para levar informação de forma mais lúdica. Inicialmente pensada para as mulheres que exercem prostituição nos hotéis da Zona Guaicurus, em Belo Horizonte/MG (daí vem o nome da publicação), a revista foi sendo vista pela comunidade ao redor e cada vez mais comentada. Passaram a perguntar sobre as próximas edições e percebeu-se uma oportunidade de sensibilização, direta e indireta. Assim, incluiu-se no conteúdo as realidades locais diversas compartilhadas pela equipe Oblata no Brasil, que realizam abordagem social em praças e ruas, bordéis, boates, postos de gasolina, dentre outros.
A prostituição é só a ponta do iceberg e não define as mulheres que a exercem
Isabel Brandão, psicóloga na Rede Oblata BH – Unidade Diálogos pela Liberdade, fala sobre a experiência e percepção sobre a revista As Garotas do Hotel:
O projeto é muito interessante porque nasceu por uma sugestão das próprias mulheres assistidas, que foram consultadas sobre o tipo de linguagem que as alcançaria melhor. A gente começou a construir problematizando situações que elas traziam, muito relacionadas ao trabalho na prostituição, e depois elas mesmas foram sugerindo que a gente trouxesse outros temas que focassem na vida da pessoa, independente da atividade que elas exercem. Então, foi daí que surgiram outras questões como, por exemplo, a maternidade e a questão do cuidado com a própria saúde. Notamos que as mulheres têm interesse, justamente por ser bem colorido, com a linguagem bem coloquial e textos curtos.
Na avaliação de comunicação e sensibilização social, verificamos o retorno que os materiais/conteúdos produzidos geram, em consonância com a proposta pedagógica. Isabel compartilha uma experiência que nos tocou e corrobora a eficácia da revista como instrumento socioeducativo que foi além das expectativas, questionando preconceitos, esclarecendo e desconstruindo o senso comum.
Algo que me tocou muito foi um fato que aconteceu com uma mulher que recebeu a revistinha na abordagem dentro dos hotéis e, depois, a partir daquele contato e leitura, ela ligou e pediu para ter o atendimento psicológico. Quando chegou aqui ela falou: “Olha, eu queria muito fazer um atendimento psicológico, pois eu tenho muitas dificuldades. Mas eu sempre tive muita vergonha porque onde quer que eu fosse eu teria que falar sobre a minha atividade. Quando eu vi a revistinha em quadrinho, eu me senti chamada para o tratamento, porque eu vi que eu teria um lugar seguro e eu me identifiquei com cada palavra que aquela personagem falava, e isso me deu coragem para vir no atendimento.” Então, essa experiência me mostrou como a revista em quadrinho pode ter um alcance muito profundo ou até trazer mudanças de atitude na vida da mulher.
Isabel Brandão – Psicóloga
José Manuel Uriol, coodenador do Projeto Ranquines da Cáritas Espanha e ex-coordenador da Unidade Diálogos pela Liberdade, que esteve também à frente do projeto de criação da revista em quadrinhos, comenta sobre a 6ª edição da HQ e traz sua percepção sobre sua contribuição para a sociedade:
É uma publicação ousada, que foge das imagens mais comuns do campo da prostituição; uma revista que está em constante evolução acompanhando as mudanças sociais que ocorrem. Saliento o fato de partir dos problemas e preocupações do dia a dia dessas mulheres, algo que só pode saber quem está constantemente em contato com essa realidade, simpatizando com elas.
“As garotas do hotel”, numa primeira análise, parece abordar algumas questões de saúde e higiene, a necessidade de prevenção de IST’s ou a relação com os clientes e com as colegas, mas, na realidade vai muito mais longe. Fala dos medos, das esperanças, dos sonhos, dos afetos, das feridas causadas por uma vida marcada por uma situação estrutural de injustiça e desigualdade. Através de conversas corriqueiras, de situações cotidianas, podemos entender as causas que podem levar uma mulher a entrar nesse mundo, a entender também a própria desigualdade de gênero em que nasceu e que persiste na sua atividade. O grande valor da revista é trazer à tona, de forma leve, questões existenciais e sociais muito profundas em torno da prostituição, sendo um grande instrumento de sensibilização social e uma maneira de oferecer um megafone a mulheres que raramente são escutadas pela sociedade.
Compromisso solidário e responsabilidade social
O ilustrador e quadrinista Hilton Rocha é o responsável pelo traço que deu vida às Garotas do Hotel. O processo de criação, feito em parceria com Nanda Soares, também faz parte de um trabalho que entrega sensibilidade e responsabilidade social, já que a produção é toda feita com um orçamento dentro do Programa Força Social da Conectidea, que conecta agentes de transformação para somar forças, dispostos a aplicar uma tabela especial para organizações sem fins lucrativos alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Os ODS 3 – Saúde e bem-estar; ODS 4 – Educação de qualidade; ODS 5 – Igualdade de gênero são o foco dentro dessa proposta. O material tem o financiamento da Fundação Serra Schönthal, organização sem fins lucrativos, criada pela Congregação das Irmãs Oblatas em 2013, que tem como finalidade fundamental: o compromisso de solidariedade com as mulheres em contextos de prostituição e/ou vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, bem como a denúncia de estruturas que não respeitam os Direitos Humanos proclamados pelas Nações Unidas, especialmente em situações de injustiça e violação dos direitos das mulheres.
Trabalhar no projeto “As Garotas do Hotel” me fez enxergar muito mais profundamente vários tipos de questões sociais, os problemas que existem ali naquela área dos hotéis da Guaicurus. Me fez ver de uma maneira muito diferenciada as pessoas que frequentam aquele espaço, os profissionais que trabalham ali, a linha de pensamento de indivíduos com quem raramente eu teria contato em outras ocasiões. O ganho para mim, como pessoa, foi muito grande, aprendi muito e é gratificante participar da produção desse material que tem uma pegada e uma intenção tão boa, trazendo a voz e a conscientização das leitoras sobre o que elas precisam e o que elas ainda podem conquistar, mesmo estando em condições que não lhes oferece muitas opções.
Hilton Rocha – Ilustrador e quadrinista
As publicações têm tiragens reduzidas e são distribuídas para as assistidas, parcerias e públicos estratégicos, o que reforçou a necessidade de disponibilizar o material de forma on-line. Todas as edições da HQ e outros materiais podem ser acessados no portal Oblata da Província Santíssimo Redentor e outros canais da Rede Oblata Brasil.