Dados do Relatório Anual de Atividades da Rede Oblata Brasil indicam aumento da fome, da depressão e casos de violência. Práticas integrativas, alicerçadas na pedagogia do cuidado, são um caminho para a redução de danos e promoção do bem-estar
A Rede Oblata pontua uma realidade desafiadora no trabalho realizado em seus projetos de missão. Como parte da Congregação das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor no Brasil, a instituição atende mulheres em contextos de prostituição ou tráfico de pessoas, todas em situação de vulnerabilidade social agravadas pela pandemia.
É o que aponta o Relatório de Atividades 2022, que compilou dados dos locais onde atua no país: Minas Gerais (1 unidade), Bahia (2 unidades) e São Paulo (1 unidade), divulgado em setembro de 2023.
Os dados foram obtidos por meio da síntese do trabalho, seja em atendimento nas sedes ou na abordagem por meio da visitas em lugares onde as mulheres exercem a prostituição, como ruas, praças, bares, boates, privês, hotéis, entre outros.
Os atendimentos são feitos segundo a realidade regional e atendem as demandas locais específicas, dentro de uma proposta pedagógica que se reflete na acolhida, abordagem social e sensibilização da sociedade.
De acordo com as informações do Relatório 2022, nas quatros unidades que compõem a Rede Oblata no Brasil, a realidade das mulheres reflete a insegurança alimentar, a naturalização da violência e necessidade de acompanhamento psicológico. No ano passado, foram abordados 102 locais de prostituição, resultando em 761 visitas e 3.014 mulheres abordadas. A rede realizou 16.662 atendimentos, 25% a mais em relação a 2019, período anterior à pandemia. Desses atendimentos, 561 foram no psicológicos, com 458 encaminhamentos para o SUS. O adoecimento mental, percebido em 2021, foi verificado em 2022.
Ainda segundo as análises contidas no relatório, as novas formas de vender o sexo, através de aplicativos, tem incitado a prostituição e favorecido problemas de saúde mental.Verificou-se um avanço do tráfico de pessoas e o aliciamento de mulheres para a prostituição, por meio das redes sociais e grupos articulados para esse fim. Também foi observado que novas formas de abordagem e aliciamento no campo virtual aumentam a possibilidade de as mulheres caírem em redes de prostituição e serem migradas.
A Rede Oblata não dispõe de dados estatísticos sobre esse tema. Porém, a percepção das profissionais registrada no relatório é corroborada por dados oficiais. De acordo com um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o maior receptor de tráfico de mulheres do Brasil é a Europa. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) mostrou em seu relatório que, em 2021, 92% das vítimas do tráfico eram brasileiras. Já a Fundação Scelles, que publicou em 2022 um estudo de 548 páginas intitulado “Sistema da prostituição: novos desafios, novas respostas” mostra que as plataformas digitais se tornaram a principal ferramenta tanto para as prostitutas quanto para os clientes.
Fome, violência e adoecimento
Em 2022, foi observada a fome e insegurança alimentar, fatores que contribuíram para o aumento dos números de mulheres na prostituição. A maioria das atendidas não conseguem fazer as três refeições diárias, e muitas delas têm que optar por uma refeição ao dia, precária de nutrientes essenciais para o corpo. O relato de uma das mulheres atendidas pela Unidade Diálogos pela Liberdade, em Belo Horizonte, que prefere não ser identificada, mostra a realidade a que estão submetidas:
“Tenho que escolher a refeição que vou fazer. Às vezes, só consigo fazer um programa que cobre R$30,00, pago R$20,00 ida e volta para o moto táxi e fico com R$10,00 para a marmita. Durmo até tarde, assim já não preciso me alimentar.”
Em relação à violência, os dados do relatório baseiam-se nos relatos das entrevistadas, já que a maioria não registra boletim de ocorrência, pois dizem que não podem denunciar os agressores que são clientes, agenciadores ou maridos porque dependem deles financeiramente e/ou psicologicamente. De acordo com uma das atendidas, a situação nos hotéis do centro da capital (Zona Guaicurus) é de abuso e violações.
“Os quartos tinham que ter áudio e câmera para os donos ver o que a gente passa lá dentro pra pagar a diária. Você precisa ver, os homens na porta são bonzinhos. Quando a gente fecha a porta eles se transformam. Vira bicho! É muita agressão. Chama a gente de feia, veia, gorda. Não quer pagar o valor combinado. Faz de tudo pra convencer a gente pra fazer tudo sem camisinha. Os homens acham que a gente tá ali porque gosta. Parece que não vê as mulheres se drogando até morrer pra ficar ali no hotel”.
O aumento das infecções sexualmente transmissíveis (IST) também foi registrado em 2022. As quatro unidades Oblatas fizeram, durante o ano, vários atendimentos que resultaram em encaminhamentos para o SUS. A Unidade Oblata Diálogos para a Liberdade, em BH, por exemplo, fez 192 atendimentos em parceria com 20 voluntários, entre eles: ginecologista, médico da família, farmacêutico, infectologista, técnicos de enfermagem, técnicos de saúde bucal, fisioterapeuta e educador físico. Muitas vezes, a mulher está ciente da necessidade, mas desconhece o acesso ao serviço público, como o caso da jovem que disse:
“Estou juntando dinheiro para o aluguel e para o gás. Eu preciso fazer o preventivo, mas só depois que tiver o dinheiro do aluguel”.
Ato em defesa da democracia em SalvadorEquipe com pessoas voluntárias na Blitz da Saúde em BH
Parcerias
A Rede Oblata no Brasil conta com a parceria de instituições para doações de alimentos. Esta prática assistencial, que não é o propósito da instituição, veio de uma situação de emergência iniciada na pandemia. A miséria bateu forte nas portas das mulheres assistidas.
A parceria da Pastoral da Mulher – Unidade Oblata em Juazeiro (BA), com o projeto Mesa Brasil – SESC, foi fundamental no ano de 2022 para garantir o acesso das mulheres à complementação alimentar, que foi feita por meio dos repasses diretos e dos lanches oferecidos na sede, a partir do recebimento de itens da rede de banco de alimentos.
“Compreendendo que a falta de acesso a alimentos nutritivos e em quantidade necessária ao organismo pode desenvolver quadros de adoecimento físico e emocional, considera-se a oferta dos alimentos uma medida preventiva de saúde, que reflete diretamente na qualidade de vida das famílias assistidas.” (Relatório p.35)
Somente no ano passado, foi feito o repasse de mais de duas toneladas de alimentos não perecíveis por meio da Unidade em Juazeiro. Em toda a Rede, as assistentes sociais encaminharam mulheres ao Cadastro Único do Governo Federal para acesso a benefícios sociais, aos quais muitas não têm conhecimento e/ou mostram dificuldades com os processos.
Ainda na Bahia, destaca-se a parceria com o Fundo Nacional de Solidariedade da CNBB, que propiciam benefícios às populações carentes. O recurso do fundo foi voltado para o curso de empreendedorismo feminino e contemplou quinze mulheres assistidas pela Unidade Força Feminina – Rede Oblata em Salvador. Realizou-se também a parceria com o Wakanda Educação Empreendedora, que desenvolveu as técnicas do curso para a prática do empreendedorismo, entendendo a importância de investir esforços para reparação social, no que diz respeito à geração de renda e desigualdade de gênero e raça.
Em 2022, a Unidade Força Feminina fortaleceu a parceria com o Shopping Center Lapa com a segunda edição do evento “Preta, você me inspira!”, cujo tema foi “Transformando dor em tecnologia de resistência”.
Todas essas articulações são essenciais para o desenvolvimento de um trabalho que contempla a saúde integral da mulher. O Projeto Antonia, Unidade Oblata em São Paulo, expandiu as parcerias para melhor atender as mulheres, tais como: a CUFA – Central única das Favelas; IOS- Instituto de Oportunidade Social Curso e o Instituto Canto de Luz, para a entrega de cestas básicas. A coordenação do Projeto participa no Conselho Gestor do Centro de Aconselhamento e testagem – CTA Santo Amaro e articula ações com o NETT – Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos.
Práticas integrativas para o resgate da dignidade
As avaliações anuais da Rede Oblata confirmam a alta demanda das assistidas por orientações e encaminhamentos aos serviços de saúde. Tendo em vista essa constatação e a realidade dos serviços de saúde, que não absorvem todas as necessidades da população, a instituição decidiu investir em métodos terapêuticos que favorecessem a prevenção e o cuidado com a saúde integral das assistidas.
As Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), recursos terapêuticos que buscam a prevenção de doenças e a recuperação da saúde, foram inseridas em todas as unidades.
“As PICS são uma ferramenta importante para a promoção da saúde global, bem-estar e resgate da dignidade humana nas mulheres em situação de prostituição. Ser ouvida, ser acolhida, entender seu lugar como cidadã e ser encaminhada aos atendimentos que lhes são de direito, tudo colabora para o fortalecimento e empoderamento delas como seres humanos dignos”.
Para além do vínculo terapêutico, são trabalhados temas como os direitos humanos civis, culturais e sociais das mulheres em contextos de prostituição ou no enfrentamento ao tráfico de pessoas com fins de exploração sexual.
A Rede Oblata nasceu há 20 anos, pela inquietação das irmãs e leigas/os diante da necessidade de promover uma maior articulação entre os Projetos de Missão Oblata no Brasil, a fim de impulsionar o trabalho, o desenvolvimento humano e social das mulheres que exercem a prostituição e atuar no enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.
Atualmente, tem se fortalecido cada vez mais por meio de uma comunicação ativa entre as equipes, possível sobretudo graças à tecnologia que permite o intercâmbio de informações, a troca de experiências e a construção de ações conjuntas.
Atua na sensibilização da sociedade e das Igrejas, em defesa dos direitos humanos das mulheres, estudando os processos históricos do patriarcado que vem definindo a vida e existência social da mulher no mundo, desde o seu nascimento.
Faz parte da Congregação das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, presente em 15 países, fundada por Madre Antonia e Padre Serra.
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